domingo, 23 de janeiro de 2011

Fundamentos para a reforma da Polícia

Coronel José Vicente da Silva Filho

  
A disseminação do policiamento em veículos, a aplicação de rádios nos carros policiais e uma central de longo alcance constituíram a primeira revolução do serviço policial. Com a facilidade de acesso da população ao centro de operações da polícia, através de um telefone centralizado e o aumento da rede telefônica, esse conjunto pareceu encerrar o modelo da polícia moderna. Daí nasceu a estratégia básica da polícia: espalham-se as viaturas pela cidade, com roteiro randômico para serem vistas e atenderem as chamadas de emergência da central. Gradativamente, a partir da década de 1970, o paradigma da polícia passou a ser o tempo de resposta, a capacidade de rápido deslocamento para atender a vítima e prender o agressor e levá-lo a uma das delegacias espalhadas pelas grandes cidades. Espalhar policiais pela área, fazê-los circular prontos para atender emergências, a partir do comando central, pareceu o sistema ideal de prevenção. Daí decorreram dois novos problemas: a centralização excessiva das ações policiais e a passividade do sistema reativo, basicamente acionado após o crime ter ocorrido. Além disso o tempo de resposta revelou-se inócuo como mecanismo de alcance do agressor.
 
 
Um problema adicional: propagando sua capacidade de atendimento, a polícia passou à condição de refém das mais variadas demandas dos cidadãos que passaram a ver em sua disponibilidade, as respostas não obtidas em outras agências de governo, como saúde e assistência social. Esse formato de policiamento ostensivo deu às Polícias Militares mais legitimidade e funcionalidade para justificar sua existência como força policial militarizada. O sistema pareceu completo e lógico quando acoplado com a Polícia Civil. As delegacias de polícia passaram a esperar os casos levados pelos PM’s e pelas próprias vítimas para preparar os procedimentos destinados à Justiça, legitimando sua função de polícia judiciária. A adoção dessa função como principal missão organizacional, a excessiva burocratização dos relatórios policiais, através de obsoletos inquéritos, e sujeição dos trabalhos aos crimes já ocorridos, tornaram a Polícia Civil uma organização predominantemente passiva e de baixa eficiência. No Rio de Janeiro um chefe da Polícia Civil foi destituído pela baixa taxa de esclarecimentos de sua gestão que não superou 10 %. É provável que poucas polícias civis atinjam essa marca que na cidade de São Paulo ficou em 2,5 % em 1997 (no Japão é de 58 %; no Canadá, 45 %; nos Estados Unidos 22 %). Nunca se investiu tanto nas polícias – efetivos, viaturas, armamento, equipamentos de rádio – como nos últimos 5 anos, particularmente nos anos de 2000 e 2001, com os repasses de recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública. Nesse período houve redução da pobreza no País (queda de 63,18 milhões de pobres em 1990 para 50,23 em 1995 e 53,11 milhões em 1999, segundo o IBGE), o acesso de uma grande camada da população a bens de consumo melhorou a qualidade de vida, favorecendo as condições de contenção da criminalidade. Mas o modelo de duas polícias centralizadas e compartimentadas, numa estratégia passiva, tornou se uma armadilha que impediu a modernização policial e facilitou tanto o crescimento como a variedade do crime em quase todas as grandes cidades. A polícia tradicionalista em suas estruturas e processos operacionais passou a requisitar mais recursos para fazer mais das mesmas coisas e o crime só continuou crescendo muito desproporcionalmente às conhecidas mazelas sociais do País. Esforços suplementares de forças especiais e espetaculosas operações não trouxeram os resultados necessários.
 
 
Temos indecentes taxas de homicídios na maioria dos grandes centros urbanos do país que, em seu conjunto, ostenta índices 4 vezes maior que a Argentina. Em São José dos Campos, rica cidade de mais de meio milhão de habitantes do interior paulista, a população cresceu 33 % nos últimos 12 anos, enquanto os homicídios aumentaram estratosféricos 492 %. Entre 1994 e 1999 a população da cidade de São Paulo cresceu 2 %, enquanto os homicídios aumentaram 25,4 % e os roubos cresceram 120 % (atualmente ocorrem cerca de 1.300 roubos por dia na capital paulista). No ano de 2000 os roubos aumentaram, em relação ao ano anterior, 55 % no Paraná, 56 % no Mato Grosso, 40 % no Maranhão; os roubos de carros aumentaram em 65 % no Mato Grosso, 82 % no Pará, 38 % no Paraná. No Distrito Federal onde existe a melhor proporção – provavelmente do mundo – de habitantes por policial (100 para um) e o soldado ganha tanto quanto um tenente do Ceará, as taxas de violência estão entre as maiores do País, com algumas cidades satélites como Planaltina, Recanto das Emas e Nova Bandeirante alcançando os recordistas nacionais de homicídios. A ilusão da redução do crime pelo mero aumento dos efetivos também pode ser observada em Maceió (Alagoas) e Natal (Rio Grande do Norte) que contam com mais de 3.000 PMs, o dobro do que necessitam, resultando em elevados custeios e baixos salários, sem melhoria correspondente nas condições de segurança. Mas equívocos básicos de organização policial correm o País de norte a sul:
  • em Goiânia há 30 delegacias para uma cidade de um milhão de habitantes (mais do que Los Angeles com o triplo da população), quando bastariam 10 ou 12;
  • em Natal, cidade de 800 mil habitantes, há 15 delegacias distritais e 15 especializadas (incluindo desnecessárias delegacias de acidentes de trânsito e de costumes);
  • na cidade do Recife os registros policiais ainda são feitos à mão em grandes livros (há cinco diferentes livros em cada delegacia e cada equipe de plantão tem seus próprios 5 livros);
  • em Maceió, cidade com pouco mais de 700 mil habitantes, há 10 batalhões da PM (nas cidades paulistas de Santo André e São Bernardo com população e índices criminais muito superiores existe apenas um batalhão em cada). Em Alagoas há batalhão com 80 PMs, quando deveriam ter pelo menos 500;
  • até recentemente os policiais civis de Minas Gerais trabalhavam um dia e gozavam uma folga de cinco dias. Ainda é comum, principalmente nas polícias civis, escalas de 12 ou 24 horas de trabalho com folgas de 72 a 96 horas, distanciando profissionais das necessárias rotinas e continuidade do trabalho policial. No Rio Grande do Norte o PM trabalha em regime de 24 horas no policiamento, uma carga horária absolutamente inadequada;
  • em São Paulo há um coronel para cada 1600 PMs, mas em Alagoas há um para cada 450 e em Rondônia um coronel cuida de 280 PMs;
  • em todos os estados há desvios de expressivos contingentes de policiais em atividades internas (como escriturários, cozinheiros, mecânicos, telefonistas, recepcionistas) como também em órgãos estranhos ao serviço policial, principalmente gabinetes políticos. Só no Tribunal de Justiça de Alagoas existia, até recentemente, mais de 300 PMs;
  • em praticamente todos os estados as promoções por merecimento privilegiam os policiais que estão mais distantes do policiamento territorial (administração, gabinetes políticos, serviços especializados), justamente a atividade que mais sustenta a capacidade de prevenção e controle do crime no aparato de segurança;
  • alguns avanços tecnológicos importantes como o mapeamento criminal em Minas Gerais e Paraná, não integram os bancos de dados das duas polícias (utilizam apenas os dados da Polícia Militar) nem servem ao planejamento conjunto das polícias civil e militar.
 
Ainda que o crime decorra de múltiplos fatores econômicos e sociais, além de crônicas deficiências no sistema de controle social, constituído pelo Judiciário, Polícia e organizações prisionais, percebe-se que existe muito o que melhorar no aparato policial para incrementar as condições de controle do crime nas grandes cidades brasileiras. Até porque a polícia constitui o órgão do sistema com capacidade mais rápida de resposta. O que não se pode é aceitar um entendimento comum até entre altas autoridades do Judiciário de que o aumento da capacitação da polícia vai estrangular a justiça com o acúmulo de presos para processar. E por um simples motivo: com uma polícia mais eficaz ocorrem menos crimes. A polícia em São Paulo dobrou o número de presos nos últimos cinco anos, com os presídios chegando aos 100 mil presos e os crimes continuaram a subir. O crime organizado se fortaleceu tanto nas grandes organizações criminosas, como no tráfico de entorpecentes, mas também na formação de quadrilhas poderosas de roubo de cargas e seqüestros, além da ousadia de bandos em resgatar presos de delegacias e presídios.

  
A capacidade dos governos de investir no aparato policial está chegando ao limite e não há perspectivas de melhoria das condições fiscais dos estados para pagar mais efetivos, equipamentos e melhores salários. Os governos vivem sob uma tensão básica: há carência de recursos para atender ao excesso de demanda em todos os setores. Enquanto faltam aos governos condições para atender eficientemente a todas as demandas, sobram pressões para que a sociedade seja melhor atendida por organizações públicas extraordinariamente eficientes no uso racional dos recursos e eficazes na produção de resultados. É necessário que se aprenda, no âmbito governamental, aquilo que é oxigênio na iniciativa privada: produzir mais com o que se tem e, se possível, com a redução dos recursos. Para isso os remédios são assustadores para a burocracia governamental: inovação e reforma.
 
 
Na polícia não é diferente. Mark Moore e George Kelling, professores do Programa de Política e Administração da Justiça Criminal da Universidade de Harvard, observam que a polícia tende a adotar o que é conhecido na iniciativa privada como estratégia defensiva, que ocorre quando o mercado de atuação é cativo e seu interesse é exclusivamente o de manter o poder num sistema conhecido e estável. Nessa situação, as organizações policiais tendem a se fixar em princípios de organização da administração científica, corrente nas duas primeiras décadas do século passado, operando com estruturas funcionais altamente centralizadoras e que só admitem novas tecnologias para facilitar as velhas formas de operação e administração.
 
 
Em outro trabalho, Mark Moore e Darrel Stephens explicam que um significativo número de executivos policiais concebe a organização policial como “uma bem desenvolvida máquina que não necessita mais do que manutenção de rotina para mantê-la funcionando”, que rejeita qualquer mudança urgente, cabendo aos chefes policiais proteger a autonomia da polícia contra aqueles que querem influenciá-la e assegurar a carreira aos que se comportarem de acordo com o status quo. Assim, as organizações policiais resistem às mudanças porque as demandas externas são vistas como ameaças às suas tradições e às experiências acumuladas; seus chefes se preocupam muito mais em manter as coisas funcionando como sempre e evitar as inovações que trazem intranqüilidade interna e podem sujeitar a organização policial a dúvidas, pressões e a mais críticas. A polícia não colabora com sua própria reforma, pois lhe falta o desenvolvimento do pensamento estratégico, capaz de intensificar o valor da instituição para melhor atender às aspirações da sociedade. Numa atitude de avestruz, ela procura se proteger, apegando-se às estruturas obsoletas e expedientes gerenciais ultrapassados, rechaçando as demandas externas que poderiam ser utilizadas como fontes de informação estratégica para mudanças em sua missão, estrutura e operações.
 
 
O Governo Federal, através do Plano Nacional de Segurança Pública e com o instrumento do repasse de recursos financeiros aos estados, tem procurado estimular a integração das polícias, recusando-se a discutir a unificação das polícias ou a criação de uma nova polícia com os recursos existentes. A integração seria uma forma de cooperação entre as atuais polícias civis e militares, em todos os níveis, para diagnosticar e implementar ações coordenadas para melhorar o desempenho, em termos de redução da violência.
 
 
A primeira questão da integração, sem unificação, é se ela realmente é possível. Há sérios problemas para isso:
  • não é verdadeira a idéia de que prevenção do crime – largamente atribuída às Polícias Militares – e a investigação das Polícias Civis sejam atividades tão diferenciadas e distanciadas que demandem organizações completamente diferentes em estrutura, treinamento, valores, áreas de operação, disciplina, normas administrativas e operacionais. O Brasil é caso raro no mundo nesse tipo de arranjo que decorreu não de racionalidade mas de meras contingências históricas e tristes conveniências de governos ditatoriais que permearam boa parte do século passado.
  • nas polícias modernas as funções de policiamento uniformizado e investigação devem boa parte de seus êxitos à interpenetração dessas funções, desde a fase de diagnóstico, planejamento e até a execução das ações.
  • a responsabilidade por uma área de ação policial é difícil de compartilhar. Em matéria organizacional é incompreensível dividir entre dois chefes a responsabilidade para planejar e executar ações de uma mesma atividade para conseguir resultados significativos. Numa polícia única há flexibilidade para se escolher investigadores, inverter funções ou ampliar o contingente de uma modalidade ou outra de ação policial. Além disso os resultados são seriamente afetados pelo grau de motivação dos chefes policiais. Com dois chefes de diferentes padrões de comportamento profissional, diferentes graus hierárquicos e diferentes salários (geralmente os policiais civis ganham mais que os policiais militares) e submetidos a diferentes normas, o entendimento e o sucesso das ações ficarão comprometidos.
  • estruturas diferentes que atuam no mesmo espaço sobre o mesmo problema tendem a constante rivalidade e atrito. É um fenômeno de psicologia organizacional só superado com trabalhosos e sofisticados arranjos, não disponíveis no dia-a-dia do trabalho policial. Se há significativas diferenças de fatores simbólicos (salários, prestígio, promoções, valores corporativos) e disputa por recursos escassos essa rivalidade tende a se agravar e comprometer o desempenho de ambas organizações.
  • a moderna metodologia de diagnóstico dos problemas de uma área, mediante banco de dados e análise criminal, demanda o planejamento de ações diferenciadas para um mesmo padrão de crime, ora através do policiamento ostensivo (uma série de roubos em farmácias da região praticados por assaltantes diferentes), ora através da investigação (quando nessa série de roubos há identificação dos suspeitos).
  • a coordenação das polícias através da designação de uma pessoa de fora dos quadros policiais traz mais complexidade para o problema. Secretários da Segurança, que são chefes da polícia estadual sem serem policiais, terão dificuldade para compreender a complexidade do trabalho policial, o que dificulta a tomada de decisões críticas para promover a eficiência e eficácia do aparato policial, além de trazer problemas de aceitação de um chefe estranho ao meio policial.
  • o duplo aparato policial demanda dispêndios extraordinários com investimentos e custeios duplicados com instalações, equipamentos (só o Ceará, o Pará e o Rio Grande do Sul têm centros integrados de telecomunicação, por exemplo) estruturas administrativas e operacionais, o que compromete o limitado orçamento da segurança e até as possibilidades de pagamento de salários mais dignos.

O extraordinário esforço requerido para promover razoavelmente essa integração dependeria de um conjunto de medidas nada fáceis: legislação única, estrutura similar, código disciplinar único, equiparação da hierarquia e salários, benefícios comuns, centros integrados de operação, centros únicos de atendimento médico e hospitalar, área única de responsabilidade operacional para unidades equivalentes e compartilhamento de instalações, academia única com extensas áreas comuns de treinamento, sistema semelhante de acesso aos quadros de chefia, sistema único de promoções, corregedoria única etc.
 
 
Aí caberia a segunda pergunta: há intenções sérias para esse esforço de integração?
 
 
Hoje dispomos apenas de iniciativas isoladas tanto quanto às localidades como no que se refere às modalidades de integração das polícias. Existem apenas alguns centros integrados de operações: no Ceará (o mais evoluído tecnológica e organizacionalmente), no Pará (o pioneiro) e mais recentemente no Rio Grande do Sul; integração operacional ao nível de distrito policial só está bem desenvolvida no Ceará nos chamados distritos modelo, onde há compartilhamento até das mesmas instalações e da base de dados; compartilhamento da mesma área para unidades equivalentes já está bem desenvolvido no Estado do Rio de Janeiro, na região metropolitana de Salvador, implantado na cidade de São Paulo e programação de implantação na região metropolitana e interior; compartilhamento da base informatizada de dados pelas duas polícias ocorrem no Ceará, São Paulo e Rio Grande do Sul; equivalência hierárquica e salarial existe em São Paulo desde 1984. Outras iniciativas estão ocorrendo em termos de formação e treinamento como no Instituto de Segurança Pública do Pará, na Fundação João Pinheiro de Minas Gerais, no Rio Grande do Sul onde soldados, agentes da polícia civil e agentes do sistema penitenciário estudam juntos na primeira etapa de seus cursos e em cursos isolados como o Curso Superior de Polícia do Rio Grande do Norte (2001) ou o Curso de Especialização em Segurança Pública realizado pela Universidade Estadual do Ceará em convênio com a Secretaria da Segurança Pública e Defesa da Cidadania, onde os bancos escolares são compartilhados por policiais civis e militares. São as iniciativas que conhecemos, além de outras existentes. De qualquer forma são iniciativas isoladas que não contemplam um conjunto suficiente para se testar a amplamente o esforço de integração.
 
 
É interessante observar que enquanto o Governo Federal enfatiza a necessidade de integração, acolhe dois projetos de lei federal estabelecendo leis orgânicas diferentes para as polícias civis e militares que reacendem os corporativismos e vão na contramão da propalada integração e da própria modernização organizacional. O projeto apresentado pelo Conselho de Comandantes das Polícias Militares é tão radical que praticamente reedita termos de decretos leis da época dos governos militares que limitava drasticamente a administração dos governos estaduais. Nesse projeto das PMs há o recrudescimento do militarismo e chega-se a detalhes como a consideração do armamento policial como material bélico ( ou seja de guerra) além de enrijecer a hierarquia nos ultrapassados 13 níveis, definir organização e terminologia militar, estabelecer o código disciplinar das forças armadas como modelo (uma organização que tem outra finalidade operacional), e definir cursos básicos e condições para sua realização.
 
 
Avanços de modernização organizacional que vem se verificando em alguns estados terão que ser desfeitos para atender essa legislação equivocada: na Bahia foram suprimidos 7 níveis hierárquicos (as graduações de cabo, terceiro e segundo sargentos, subtenente, aspirante, segundo tenente) adequando à hierarquia das polícias e organizações modernas (poderia ser suprimidos mais um dois níveis de oficiais superiores); no Rio Grande do Sul estão sendo suprimidos as graduações de cabo, mantendo apenas um nível de sargento que poderá terminar a carreira como tenente e a formação de oficiais (que exige diploma em Direito para ingresso) diploma capitães, equiparando a hierarquia com a Polícia Civil; na Bahia reduziu-se o número de batalhões substituídos por companhias independentes comandadas por majores; no Rio Grande do Sul adotou-se um código disciplinar que elimina as obsoletas penalidades de prisão por faltas administrativas; no Pará, como em alguns outros estados, estão sendo integradas as academias e cursos.
 
 
No dia 9 de novembro de 2001, ao encerramento de uma reunião, os comandantes das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares editaram a Carta de Fortaleza, que abre com a declaração óbvia de que “o contexto atual da segurança pública no país requer a participação efetiva e integrada dos órgãos policiais responsáveis pela prevenção e repressão à criminalidade”, não para melhorar a segurança dos cidadãos, mas “como forma de garantir a governabilidade”. Ou seja, insiste-se em priorizar a missão da polícia em proteger o estado em detrimento da melhoria das condições de segurança da população. Reafirma o Conselho, e com razão, a necessidade da regulamentação do parágrafo 7o do artigo 144 da Constituição Federal que dispõe sobre a organização e funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública que aguarda projeto do governo há 13 anos. Mas se equivoca quando imagina que isso possa “garantir a eficiência de suas atividades”. Eficiência se consegue com arranjos organizacionais e com capacitação gerencial. De qualquer maneira a regulamentação mencionada dispensaria plenamente a edição das leis propostas por cada facção policial.
 
 
O que parecem pretender as polícias com essas propostas de lei orgânica é limitar as ações de modernização que possam ser empreendidas pelos governadores. No projeto que apresentaram, os governadores dos estados praticamente deverão se limitar a pagar os salários e fornecer equipamentos pois estarão impedidos de modernizar as polícias em termos de mudanças na organização, hierarquia, cursos de capacitação e ações de integração. A ênfase das PMs parece uma declaração de imunidade como intocáveis instituições militares estaduais (expressão constante na Carta de Fortaleza). O militarismo das forças armadas é compreensível porque são organizações de caráter pré-moderno de baixa interação com as mudanças sociais, enquanto as polícias necessitam ajustamento com o avanço das tecnologias administrativas, da evolução social e da expansão dos crimes.
 
 
Nas polícias modernas, principalmente nos grandes e complexos centros urbanos, o controle policial da criminalidade só pode ser realizado com razoável eficácia se houver um flexível ajuste das atividades de prevenção e investigação, baseadas em constante e inteligente análise de dados. Obviamente o planejamento e execução dessas atividades, com base territorial, deve estar sob responsabilidade de um só chefe que terá sua competência regularmente avaliada pelo uso econômico dos recursos, pela qualidade do atendimento dispensado à sua comunidade e pelos resultados positivos obtidos em sua área de atuação, em termos de redução dos índices de criminalidade e de desordem.
 
 
As tentativas de harmonização das duas atividades, com ajustes entre as duas corporações policiais, mesmo quando há expressa intenção governamental nesse sentido e bom entendimento entre os principais chefes policiais, são diluídas ao longo das cadeias hierárquicas onde há insuficiente troca de informações, raro planejamento conjunto e os resultados, obviamente, tendem a ser pífios e desfavoráveis à comunidade. Em visita recente ao Brasil, Louis Anemone, que chefiou o Departamento de Polícia de Nova York entre 1995 e 1999, observou que nas polícias estruturadas em uma única organização, o ajustamento entre os policiais uniformizados e os encarregados de investigação, que são formados na mesma academia, atuam sob mesmos códigos de conduta e obedecem ao mesmo chefe é sempre trabalhoso, e que no sistema brasileiro essa tarefa, deixada a mecanismos informais e boa vontade dos milhares de chefes, deveria ser um desafio quase sem solução.
 
 
Insistir na existência de dois organismos diferenciados para executar a mesma função policial de prevenção do crime é investir na continuidade da espiral de violência e comprometer o futuro da sociedade.
 
 
E por que é mantida essa estrutura bipartida e disfuncional de polícia no Brasil? Os motivos são variados:

  • As polícias civil e militar, na maioria das vezes são comandadas por policiais que passaram a maior parte da carreira distanciados do fundamental policiamento territorial e, por isso, não conhecem intimamente o fundamento preventivo do serviço policial, que demanda a integração das atividades do policiamento uniformizado e da investigação. Esses chefes policiais acabam passando o conceito equivocado de organização policial às autoridades e à opinião pública. Lobistas das polícias, freqüentam o Congresso Nacional à margem dos governos estaduais e costumam ser da mesma estirpe da maioria dos chefes policiais, obcecados na manutenção do status quo, mas sem vivência do policiamento de base.
  • O governo federal, os governos estaduais, assim como os deputados e senadores, geralmente não têm idéia clara de como deveria ser um modelo funcional de polícia, nem de como isso seria importante para maior eficácia no controle da criminalidade. A variação de organização e de métodos de trabalho das polícias estaduais não reflete apenas diferenças regionais, mas também desconhecimento por parte dos governos que acabam se sujeitando à influência de suas polícias. Um exemplo dessa inquestionada influência é o decreto de reorganização da PM paulista editado em novembro de 1999 pelo Governador Mário Covas, identificado com a esquerda do espectro político, em que atribui a mais de 3 mil homens da tropa de choque a função prioritária de contra guerrilha e apenas supletivamente a função de policiamento. O decreto evidentemente preparado pela própria PM mostra a rigidez conservadora da organização em relação ao ajustamento de suas missões policiais.
  • Freqüentemente são apontados modelos estrangeiros onde existe polícia militarizada para justificar a existência da polícia militarizada (como França, Portugal, Itália, Espanha, Argentina, Chile, Peru, Argentina, Colômbia). Em todo o mundo 24 % dos países apresentam polícia com alguma característica militar. Com as exceções européias, onde Portugal e Espanha herdaram a polícia de longos períodos ditatoriais e Itália e França são países de administração fortemente centralizada, as polícias militarizadas concentram-se na África Negra, ao sul do Saara, e na América Latina, região de longa história de regimes ditatoriais sustentados por polícias militarizadas e controladas pelos exércitos. Segundo relatou David Bayley em seminário em São Paulo, na América Latina 18 % dos países têm exércitos realizando atividades de policiamento, em 36 % há controle da polícia pelo ministério da defesa ou exército e em 56 % das polícias se observam características militares.
  • Outro argumento é o de que sem a disciplina militar, a polícia – no caso a militar – perderia sua capacidade de responder prontamente as ordens de seus superiores, seria mais vulnerável à corrupção e afrouxaria sua dedicação no atendimento das necessidades da população, além de favorecer a sindicalização, os movimentos contestatórios e greves de policiais. Esse argumento pode ser facilmente contestado: polícias altamente eficientes como as de Londres ou Nova York não são militarizadas, como não era militarizada a Guarda Civil de São Paulo, uma das melhores organizações policiais que já existiram no País. E vale lembrar que as gravíssimas greves policiais ocorridas em 1997 foram mais expressivas nas polícias militares mais conhecidas pelo rigor de sua disciplina militar: Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Pernambuco. As demais greves verificadas foram mais constantes e mais graves nas PMs do que nas polícias civis, apesar de todas as restrições disciplinares e penais.
  • Uma restrição apontada é o gigantismo da polícia única com um poder ameaçador sobre a sociedade. E que seria melhor para a sociedade um sistema de duas polícias em que uma vigia a outra, num sistema de pesos e contrapesos, segundo opinião de um ex-comandante da PM do Paraná e ex- presidente do Conselho de Comandantes de PM’s e Corpos de Bombeiros. Juntar 8.000 homens da PM de Alagoas ou Goiás, com mais 2.000 homens da Polícia Civil não é promover gigantismo. Nem mesmo os 17.000 PM’s de Brasília com seus 4.000 colegas da Polícia Civil podem ser ameaça ao governo ou à sociedade. Gigante já é a PM de São Paulo com 84.000 integrantes e perspectiva de chegar aos 92.000 nos próximos anos. O argumento é falacioso pois, a rigor, a polícia opera de forma departamentalizada, quase como organizações autônomas nas cidades das regiões metropolitanas e no interior. O argumento de mútua vigilância é absurdo, pois as organizações públicas devem cumprir a lei e ser fiscalizadas por seus próprios responsáveis, pelo ministério público e pela própria população.
  • O argumento derradeiro é dado pelo Ministério da Defesa, ao qual interessa um sistema de polícia militarizada, sob seu controle como força auxiliar para atuar em distúrbios mais graves e evitar a ação prematura de suas tropas federais, pouco qualificadas para ações urbanas. Em artigo na revista “A Força Policial”, publicada pela PM de São Paulo, o General Cyro Leonardo Albuquerque, ex-inspetor da Inspetoria Geral das Polícias Militares advoga a permanência do atual sistema de polícias militares e repele a unificação policial que poderia ter, em sua avaliação, as seguintes conseqüências: 1) “a possível sindicalização de seu pessoal e a filiação a centrais sindicais”; 2) “a necessidade de criação de um organismo policial federal que substituiria a polícia unificada quando esta paralisasse suas atividades ou tivesse esgotada sua capacidade de atuação, com o objetivo de evitar o emprego prematuro das Forças Armadas em ações específicas de segurança pública, desgastando-se em operações para as quais não estão qualificadas” Para o general Cyro “a queda dos índices de criminalidade e violência no País somente se verificará quando, através de decisão política, buscar-se combater as causas da criminalidade”. Se o pensamento do General Cyro expressar a posição atual das Forças Armadas, teremos concluído: que as polícias não estão em condições de reduzir a criminalidade, que o desempenho da polícia já atingiu o ápice de sua capacidade e que a preocupação se concentra na utilidade das forças policiais militarizadas para as situações de crise, bem como para evitar os gastos federais com uma organização aparelhada para essas funções.

O Brasil vem assistindo sensíveis mudanças em instituições até recentemente julgadas intocáveis. O Poder Judiciário está sofrendo mudanças, juízes classistas foram extintos, o Congresso Nacional aprovou um projeto de extinção da Lei de Segurança Nacional, a imunidade parlamentar está sendo severamente limitada, um presidente e senadores perderam mandatos. Não há sentido em se manter intocável a estrutura policial brasileira quando os indicadores de violência dos grandes centros urbanos estão comprometendo severamente a qualidade de vida de seus habitantes e resistindo aos esforços convencionais das polícias.
 
 
A solução da questão policial, como instrumento de controle da criminalidade, passa pela reforma da estrutura policial. Precisamos desenvolver o formato de uma polícia única, de caráter estadual, nos moldes das polícias modernas que desenvolvem o ciclo completo do trabalho policial (policiamento ostensivo e investigação) e detém unicidade de atuação e comando em cada área. É necessário inverter o atual processo em que as autoridades do Governo Federal, timidamente, preferem investir na integração das polícias para cogitar de posterior unificação. Institucionalizar essa integração num único corpo organizacional é a única solução para uma polícia sem adjetivos, nem militar, nem judiciária. Deve-se promover mudança constitucional prevendo a polícia única, com disposições transitórias de integração a serem desenvolvidas num prazo de quatro anos, sob incentivos do Fundo Nacional de Segurança Pública, aplicando-se recursos onde ocorrerem mais avanços. O Ministério da Justiça, que poderia ser transformado em Ministério da Justiça e Segurança Pública, deveria ter um papel fundamental nesse processo de transição, orientando padrões de legislação, de organização das polícias e de metodologias de planejamento operacional voltadas para a redução da criminalidade, principalmente através de sistemas de análise criminal e de integração com ações comunitárias.
 
 
A unificação traria um importante benefício adicional, a possível adoção pela nova polícia única de importantes padrões profissionais das polícias militares mais adequados às atividades policiais, como sua tradicional intensidade de treinamento, a ênfase da disciplina (retirados os excessos do militarismo), a supervisão mais estreita dos chefes sobre os desvios dos subordinados e o rigor de sua corregedoria, fatores essenciais para controle da corrupção policial, atualmente um grande problema para muitas polícias civis.
 
 
Restaria ao governo sinalizar claramente as mudanças, através da alteração constitucional, sob pena de deixar espaço para as resistências corporativas que, sem compromisso com o futuro, preferem as soluções do passado. A organização policial só é permeável às mudanças substantivas quando submetida a crises, como aumento continuado da criminalidade, alastramento da corrupção e da violência policial e questionamento continuado da opinião pública, imprensa e dos demais poderes sobre a competência do governo em controlar e promover a competência da polícia que comanda. Na escrita japonesa o ideograma para crise é o mesmo para o conceito de oportunidade. Essa crise é também a oportunidade ideal para a reforma da polícia com raízes no século 19, que atendeu as conveniências do Estado na “Era Vargas” e no longo governo militar. Agora precisamos fazer lobby para que a polícia aceite o compromisso de atender com mais competência a sociedade brasileira do século 21.
 
 
 
Fonte: Página oficial do Coronel José Vicente da Silva Filhoa

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